Thursday, February 09, 2012

o amor nos tempos do cólera [#1]

já digo de antemão, as palavras que seguem foram retiradas do livro ao lado. um trecho interessante onde gabriel garcía márquez descreve um acontecimento trivial da vida em comum que quase terminou com uma relação de meio século. a maneira de contar, o tom que ele dá aos personagens e todo o desfecho simples desse acontecimento é umas das várias possíveis respostas à pergunta "o que é arte". é também uma amostra do que os estudiosos da arte das letras chamam de realismo. estou escrevendo aqui como alguém que compartilha uma música. vou dividir em partes, pra evitar a fadiga.

Não havia ninguém mais elegante do que ela para dormir, com uma postura de dança e a mão sobre a testa, mas também não havia ninguém mais feroz quando lhe perturbavam a sensação de se crer adormecida quando já não estava. O doutor Urbino sabia que ela permanecia ligada ao menor ruído que ele fizesse, e que inclusive teria agradecido a ele, para ter em quem botar a culpa de acordá-la às cinco da manhã. Tanto era assim que nas poucas ocasiões em que tinha de tatear nas trevas por não encontrar os chinelos no lugar de sempre, ela dizia logo numa voz de quem está entre dois sonhos: "Você deixou os chinelos no banheiro ontem à noite." Em seguida, com a voz desperta de raiva, amaldiçoava:
- A pior desgraça desta casa é que não se pode dormir.
Então rolava na cama, acendia a luz sem a menor clemência para consigo mesma, feliz com sua primeira vitória do dia. No fundo era um jogo de ambos, mítico e perverso, mas por isso mesmo reconfortante: um dos muitos prazeres perigosos do amor doméstico. Mas foi por causa de um desses brinquedos triviais que os primeiros trinta anos de vida em comum estiveram a ponto de se acabar porque um certo dia faltou sabonete no banheiro.

(to be continued)

1 comment:

Prof. Fabricio do Prado said...

Esse livro é bom demais!